Direito do Consumidor pode ser considerado um sucesso no Brasil

Matéria Conjur

GARANTIAS DO CONSUMO

Direito do Consumidor pode ser considerado um sucesso no Brasil

28 de março de 2018, 8h05

Por Claudia Lima Marques

Em 15 de março de 2018, festejamos o Dia Internacional dos Consumidores, com duas manifestações fortes: uma reflexão crítica sobre os resultados do Direito do Consumidor e uma denúncia de criação pela lex mercatória dos fornecedores de produtos e serviços no Brasil de novo requisito da ação e de ressarcimento de danos aos consumidores. Essas manifestações merecem uma reflexão conscienciosa, que não pode estar desconectada da realidade estruturalmente desequilibrada de nosso mercado e do mandado constitucional de um dever de proteção aos consumidores pelo Estado, imposto pelo artigo 5, XXXII da Constituição Federal de 19881.

Analisando os 30 anos da CF/1988, a professora Amanda Flávio de Oliveira perguntou, nesta mesma coluna, se a “proteção do consumidor passa, necessariamente, em todos os casos, pela ação positiva do Estado na economia ou a experiência — brasileira mesmo — pode nos indicar que essa alternativa fracassou em casos pontuais?”. Se subdividirmos essa pergunta em duas partes: a primeira parte refere-se, na visão da Law and Economics, à “legitimidade” da ação “intervencionista” do Estado na economia, em geral para proteger consumidores no mercado; a segunda é sobre o “fracasso”, que a autora parece retirar das muitas ações judiciais oriundas do desrespeito aos direitos dos consumidores no mercado brasileiro e do “fracasso” das agências em regularem os mercados, de forma satisfatória para os consumidores e o respeito de seus direitos de forma “voluntária” pelos fornecedores de produtos e serviços no Brasil. A segunda parte da manifestação merece uma reflexão maior.

Neste mesmo dia, 15 de março de 2018, a Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB — reunida para assinar junto com todo o movimento consumerista um manifesto contra os retrocessos em Direito do Consumidor e pela aprovação imediata dos projetos de atualização do Código de Defesa do Consumidor (PLs 3.514 e 3.515/2015) em exame na Câmara de Deputados — aprovou uma moção contra a tese da “demanda resistida”. Tese segundo a qual, somente após reclamar “administrativamente” no consumidor.gov.br, nos SACs dos fornecedores ou nos meios de mediação e conciliação dos próprios fornecedores, os consumidores brasileiros “teriam direito” de ação/direito de acesso ao Judiciário (?). A forte moção, aprovada por unanimidade pela  omissão do Conselho Federal da OAB, é a seguinte:

“A exigência de reclamação administrativa prévia ou uso dos SACs como requisito para o recebimento de ação judicial é incompatível com o sistema de proteção e defesa do consumidor e com o direito de acesso à Justiça do consumidor lesado, constitucionalmente assegurado. Segundo o CDC, a reclamação extrajudicial e a tentativa de conciliação com o fornecedor de produtos e serviços não é condição da ação ou requisito para o processamento da petição inicial, mas obsta ou é causa de suspensão do prazo decadencial (art. 26, parágrafo 2º, I, CDC), caracterizando direito potestativo do consumidor, não podendo a livre opção do consumidor de não utilizar o ‘consumidor.gov’ ou outros meios alternativos de solução com os fornecedores, influenciar o direito de ressarcimento de danos morais e materiais do consumidor e o seu acesso direto ao Judiciário”.

Não há dúvida de que o objetivo de ambas as manifestações é a defesa do consumidor, forte no artigo 170, V da Constituição Federal de 1988. Mas há uma aparente contradição no que se refere aos “instrumentos” ou métodos para alcançar essa defesa no Brasil de hoje. A liberal doutrina da Law and Economics vê nas muitas ações judiciais uma “comprovação” de que a intervenção do Estado-juiz e Estado-regulador no mercado seria falha, tentando fazer acreditar que a existência dessas ações significa um “fracasso” do direito (objetivo) do consumidor, e não um fracasso de seu cumprimento voluntário pelos fornecedores de produtos e serviços e suas federações, sempre resistentes ao Rechtsdurchsetzung desses direitos subjetivos dos consumidores em nosso país.

Responda-se que não há comprovação que diminuir a intervenção protetiva do Estado-juiz e Estado-regulador significa realmente “melhorar a tutela” para os consumidores, que seria “suficientemente” feita pelo mercado. Ao contrário, empiricamente, o que comprovou a crise financeira dos Estados Unidos de 2008 é que o mercado parece tentar aproveita a “brecha” da desregulamentação para tirar vantagem, o que levou à crise, com a consequente quebra dos consumidores sub prime, quebra generalizada do mercado consumidor do país e a uma crise financeira de proporções mundiais2. A desregulamentação do Direito do consumidor, pelo menos em setores regulados, é, pois, um risco sistêmico, que até mesmo o Banco Mundial reconheceu e determinou legislar3 sobre superendividamento ou insolvência dos consumidores!

Concordo com os advogados da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB, que consideram que as ações judiciais são a realização (Rechtsdurchsetzung) de um direito existente, um sinal de esperança, sinal de sucesso e de realização desse direito “vivo” (Law in action). Assim, denunciam com sua moção que os meios alternativos de solução de controvérsias pelos próprios fornecedores ou organizados por eles, que essa “tutela” opcional dos direitos dos consumidores, está se tentando transformar em “obrigatória” pela ajuda dos juízes que não querem mais que os consumidores dirijam-se diretamente ao Judiciário para pleitear seus direitos “violados”, se não “resistidos” por esses meios antes “voluntários”, que seriam agora “obrigatórios” aos consumidores, cujos direitos foram “resistidos” por violações dos fornecedores!

Realmente, na nascente tese da “demanda resistida”, os fornecedores de produtos e serviços aparecem como “cordeiros-amigos” que colocam à disposição dos consumidores uma série de canais de “diálogo”, de “solução” e de “negociação” direta, e os consumidores “aparecem”, de outro lado, como radicais “lobos ou Gersons”, que não querem perder tempo com negociações, e sim “tirar vantagem” dos “cordeiros” recorrendo ao Estado-juiz para que diga o direito… direito que — por sinal — os cordeiros obviamente sabem exatamente qual é, e não o cumpriram por um simples cálculo de custo-benefício!

Mister um olhar mais profundo. Trata-se de uma boa ideia como um canal de comunicação, uma conciliação possível, que se transforma na prática em “truque” para transferir para “seus foros” sigilosos, onde não se faz jurisprudência vinculante e o silêncio impera sobre os problemas e danos sofridos pelos consumidores, as demandas dos consumidores, sem fazer precedentes para os demais casos, sejam precedentes administrativos (como no Sindec, em listas de fornecedores do CDC) ou precedentes judiciais! Essa nova “teoria” tenta transformar uma “opção” potestativa do consumidor (que tinha a ver com obstar o prazo decadencial, ex vi artigo 26, parágrafo 2º, I do CDC) em uma nova “condição da ação”. Tenta transformar uma opção a mais para o consumidor conseguir realizar seu direito subjetivo, em um “requisito” para receber ressarcimento por danos morais e materiais… Uma benesse que se transforma em grave obstáculo ao exercício de um direito fundamental de acesso à Justiça! A moção da comissão é de grande importância! Realmente não há base no sistema do Direito do Consumidor positivo brasileiro para negar a prestação jurisdicional aos consumidores que optaram por buscar seus direitos diretamente ao Poder Judiciário, e a referida teoria da “pretensão resistida” não deve prosperar .

Por fim, quanto ao resultado do Direito do Consumidor, mencione-se que, particularmente, acho um sinal de sucesso do Direito do Consumidor no Brasil o fato de o consumidor brasileiro ainda acreditar na Justiça e no Judiciário, conhecer e usar o Código de Defesa do Consumidor mais de 25 anos depois de sua promulgação! Apesar do respeito a outras visões, parece uma conclusão majoritária, que um tempo como o nosso, de crise moral e ética, não é o momento de se desregular o Direito do Consumidor. Bem ao contrário, necessário valorizar o instrumental de proteção que temos, e urgentemente aprovar os PL 3.514/2015, sobre o mundo digital, e o PL 3.515/2015, sobre o crédito ao consumidor e combate ao superendivamento, atualizando o CDC!

Festejar os 30 anos do ordenamento constitucional, que impõe um dever de proteção do Estado-juiz, do Estado-regulador, do Estado-sancionador, do Estado-legislador sempre que se fizer necessário a proteção dos consumidores, seja na lide individual, ou coletiva, é respeitar essa decisão constitucional. Se algo há que mudar, é o fato das agências considerarem-se imunes ao mandamento do artigo 5, XXXII da CF/1988 de elas também, como parte do Estado, promoverem a defesa do consumidor nos mercados que regulam (artigo 170, V da CF/1988).

Melhorar a “realização” do Direito do Consumidor é uma luta constante, que passa necessariamente por aprimorar as sanções e incentivos, de forma que não “valha” a pena causar danos aos consumidores, e passa por valorizar o dever de proteção aos consumidores do Estado-juiz/Estado-regulador. Se o cumprimento do Direito do Consumidor no Brasil é ainda “resistido” por alguns fornecedores de serviços e produtos, pode ser considerado um sucesso da sociedade brasileira. Um sucesso unânime, apesar das várias visões existentes e dos “direitos” e “demandas” ainda resistidos!


1 Assim DUQUE, Marcelo. “A proteção do consumidor como dever de proteção estatal de hierarquia constitucional”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 71/2009, Jul – Set / 2009, p. 142 e seg.
2 Assim ensina NEFH, James. Preventing another financial crisis: The critical role of consumer protection laws, in MARQUES, C.L.; FERNÁNDEZ ARROYO, D. P.; RAMSAY, I.; PEARSON, Gail. The global financial crisis and the need for consumer regulation, ASADIP: Porto Alegre/Asunción, 2012, p. 223ss.
3 Veja MARQUES, Claudia Lia ; LIMA, Clarissa Costa de. “Nota sobre as conclusões do Banco Mundial em matéria de superendividamento dos consumidores pessoas físicas”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 89/2013, p. 453 – 457, Set – Out / 2013, p. 453 e seg.